Charlotte tentou esclarecer a diferente autoria das obras sem revelar a identidade real das irmãs (nem a própria) em 1848, no prefácio à terceira edição de Jane Eyre. No entanto, só conseguiu elucidar os fatos em 1850, na breve notícia biográfica que acompanhou uma nova edição de Agnes Grey e O Morro dos Ventos Uivantes, quando - ainda como "Currer Bell" - revelou ao grande público os verdadeiros nomes das jovens irmãs, que então dormiam o sono tranquilo no silêncio da terra.
Em 1847, quando O Morro dos Ventos Uivantes foi publicado, ainda vigorava a convenção segundo a qual os romances deviam servir para a formação e a edificação moral dos leitores. Assim, a obra de Emily Brontë foi recebida com certa desconfiança, pois, ainda que muitos percebessem a força que emanava dessas páginas, a história parecia desenrolar-se em um incômodo universo desprovido de princípios moras, em que a linha entre o bem e o mal é difusa e as motivações dos personagens parecem, a um só tempo, compreensíveis e atrozes.
As contradições e indecisões que perpassam o texto resultam em vários obstáculos à interpretação do romance, o que levou os comentaristas da época a ver "um grande poder no livro, ainda que um poder sem propósito" ou "uma espécie de poder em estado bruto - uma força inconsciente, da qual o detentor jamais parece tirar o melhor proveito". Até mesmo George Eliot chegou a afirmar a respeito da obra que "Todo sacrifício é bom - mas seria razoável esperar que fosse motivado por uma causa mais nobre do que uma lei diabólica que acorrenta o corpo e a alma de um homem a uma carcaça em putrefação". Esses conflitos no plano moral, no entanto, não são a única fonte de incertezas em O Morro dos Ventos Uivantes: outro complicador importante é a própria estrutura narrativa da obra.
Logo no início do livro, o sr. Lockwood aluga a Granja da Cruz do Tordo e resolve visitar o proprietário Heathcliff, que habita a propriedade que dá o nome ao romance na companhia de um jovem rústico, de uma moça temperamental e de um criado grosseiro. Logo fica claro para Lockwood que essa visita não é nem um pouco bem-vinda, porém uma nevasca obriga-o a pedir abrigo na casa, onde passa uma noite muito atribulada - não apenas pela evidente má-vontade com que todos o recebem, mas também devido a uma estranha aparição fantasmagórica. No dia seguinte, quando Lockwood retorna à Granja da Cruz do Tordo e relata tudo o que aconteceu à criada Nelly Dean, a mulher começa a lhe contar a turbulenta história de Heathcliff e das famílias Linton e Earnshaw. Nesse ponto ocorre algo muito interessante: Lockwood, por assim dizer, cede o posto de narrador a Nelly - o que se percebe não apenas na pontuação do romance, que deste ponto em diante abandona os travessões nas falas da criada, mas também na voz distinta dos dois personagens. O resultado é uma narrativa dentro de uma narrativa que tem o efeito de manter o leitor dois graus afastado dos eventos narrados e, portanto, sem acesso direto aos pensamentos e sensações dos personagens.
A história contada por Nelly em flashback gira em torno de Catherine Earnshaw e do irmão de criação Heathcliff. Ainda na infância, os dois tornam-se companheiros inseparáveis, porém mais tarde uma difícil escolha feita por Catherine provoca a avassaladora vingança de Heathcliff, que acaba se transformando em um dos vilões mais brutais e truculentos da literatura.
Apesar de toda a violência do romance, criticada no século XIX e impressionante até mesmo para os padrões atuais, vale notar que uma das cenas finais de O Morro dos Ventos Uivantes é um idílio de amor despertado graças ao poder transformador dos livros - um poder demonstrado de maneira ainda mais cabal na posteridade por Emily Brontë, que, morta aos trinta anos, deixou como legado um único romance que venceu o tempo e ainda hoje se ergue "colossal, obscuro e ameaçador, meio estátua, meio rocha" em nossa imaginação.
Espero que tenham gostado. Até mais!
Paulo Henrique
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